20.5.20

AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA CORONA


Não me gabo de escolher o tratado de amor do velho García Márquez para propor a você que aqui chegou uma reflexão sobre nosso senso nato de resistência, pois tenho pensado (como muitos também tem) sobre o que significa resistir nesse tempo particular da história, e o quão difícil é não sucumbir à raiva infecciosa e ao vício em indignação que existe e persiste em nosso mundo hoje.

Na polarização da moda, os #FicaEmCasa tentam demonstrar, com sólidos argumentos, para a turma do #BrasilNãoPodeParar os riscos de afrouxar o isolamento social; essa guerra fria esquenta a cada dia. O resultado são interlocutores defendendo trincheiras e, velozes, tornam-se inimigos furiosos.

Sabemos que o coração da resistência pacífica não é retribuir o ódio com o ódio, mas amar nossos inimigos como Jesus nos disse para fazer. O fato de saber disso não significa que sempre vamos conseguir fazer. Mas acabei achando essa passagem de Thomas Merton que realmente reformula o problema para mim:

Simplesmente resistir ao mal com o mal, odiando aqueles que nos odeiam e procurando destruí-los, na verdade não há resistência alguma. É a colaboração ativa e intencional no mal que leva o cristão a entrar em contato direto e íntimo com a mesma fonte do mal e do ódio que inspira os atos de seu inimigo. Na prática, leva à negação de Cristo e ao serviço do ódio, e não do amor.”
Passion for Peace: Reflections on War and Nonviolence

Uma “colaboração ativa e proposital no mal”. A ideia de que retornar o ódio com o ódio é colaborar com o mal leva a incapacidade de amar meu inimigo a um nível totalmente novo. Eu consigo lidar com o fato de ser um cristão imperfeito (tenho muita prática nisso), mas um colaborador do mal? Fiquei incomodado com esse paradoxo.

Confortável seria acreditar não ser possível amar o próximo, porque é justamente o próximo que não se pode amar, só aos distantes. Se assim for, estamos na estação perfeita para esbanjar amor em tempo de distanciamento.

23.9.15

sobre a Cantiga do Estradar

Esta cantiga é toda uma viagem, percorrer que é mais uma metáfora da vida humana. E o que se sente quando se vai ouvindo esta viagem, verdadeiro rito de purificação, cheio de provas, é que a música é também feita em espiral, nas voltas de um caminho ascendente e sem fim. Constroe-se este “canto-conto” com elementos das estórias de fadas, dos mitos antigos, tão presentes no Nordeste. Sete tempos, sete reinos, sete dedais de veneno.

A purificação se faz pelo sofrimento fundamentado na rocha da fé, força maior do peregrino que viaja a vida neste mundo, onde sempre a estrada está a tangenciar verdadeiros poços, abismos do maligno minados de alçapões e laços perniciosos que arrastam as almas para reinos obscuros, onde até para o uso dos próprios sentidos altas taxas são impostas. Aqui a purificação se faz também e sobretudo pelo completo esvaziamento de si mesmo para alcançar a plenitude do amor-zênite da parabólica da ética de Jesus Cristo, o que, posto em confronto com os ritos órficos, confronta o Clarão e a Treva, quando, ali, a purificação se dá pela mutilação da alma nas viagens ao inferno. E a cantiga, ligando-se toda ao tema do exilio, torna-se carta quando do relato dos perigos da procura, da aventura, do percorrer – uma transgressão sujeita a todos os riscos, “isso se deu cuano môço”.

Ao tratar do universo mágico, da transmissão do ensinamento – verdadeiro aparelho do suportar -, é que se ajusta o dialeto catingueiro: do branco como nação do imaculado, da contemplação mística que só é dada aos puros ou que, pelo menos, para os que tanto se esforçam.

O fecho desta “carta-cantiga”, narrativa, de caminho, ensinamento iniciático, de paciência, nos lembra o roteiro de Dante, o italiano, em sua Comédia. Também em seu viajar, coloca junto aos planos celestes e etéreos a denúncia de uma Florença corrompida por crimes e rapinas, “marguiada in transgressão”.

CANTIGA DO ESTRADAR
Elomar Figueira Melo, Cartas Catingveiras

Tá fechando sete tempo
qui mia vida é camiá
pulas istradas do mundo
dia e noite sem pará
Já visitei os sete rêno
adonde eu tia qui cantá
sete didal de veneno
traguei sem pestanejá
mais duras penas só eu veno
ôtro cristão prá suportá
sô irirmão do sufrimento
de pauta vea c'a dô
ajuntei no isquicimento
o qui o baldono guardô
meus meste a istrada e o vento
quem na vida me insinô
vô me alembrano na viage
das pinura qui passei
daquelas duras passage
nos lugari adonde andei
Só de pensá me dá friage
nos sucesso qui assentei
na mia lembrança
ligião de condenados
nos grilhão acorrentados
nas treva da inguinorança
sem a luiz do Grande Rei
tudo isso eu vi nas mia andança
nos tempo qui eu bascuiava
o trecho alei
tô de volta já faiz tempo
qui dexei o meu lugá
isso se deu cuano moço
qui eu saí a percurá
nas inlusão que hai no mundo
nas bramura qui hai pru lá
saltei pur prefundos pôço
qui o Tioso tem pru lá
Jesus livrô derna d'eu môço
do raivoso me paiá
já passei pur tantas prova
inda tem prova a infrentá
vô cantando mias trova
qui ajuntei no camiá
lá no céu vejo a lua nova
cumpaia do istradá
ele insinô qui nois vivesse
a vida aqui só pru passá
nois intonce invitasse
o mau disejo e o coração
nois prufiasse pra sê branco
inda mais puro
qui o capucho do algudão
qui nun juntasse dividisse
nem negasse a quem pidisse
nosso amô o nosso bem
nossos terém nosso perdão
só assim nois vê a face ogusta
do qui habita os altos ceus
o Piedoso o Manso o Justo
o Fiel e cumpassivo
Siô de mortos e vivos
Nosso Pai e nosso Deus
disse qui havéra de voltá
cuano essa terra pecadora
marguiada in transgressão
tivesse chea de violença
de rapina de mintira e de ladrão

15.8.15

agora somos só nós dois a caminhar lado a lado seguindo adiante sem olhar pra trás vem e me traz aquela tua pele repouso merecido das longas distancias percorridas para que na falência múltipla dos órfãos de amor eu venha pronunciar teu nome com o brilho lacre almejado das retinas

14.8.15

me-beija & recebe-me
nos batentes de tua casa
tua língua tapete 
e teus dentes claros postes
mastigam-me enquanto te como 
como naquele primeiro beijo